Uma vez que a ex-presidente Dilma Rousseff falou que a Netflix “não sabia onde estava se metendo” ao produzir e distribuir a série O Mecanismo, e, mais, afirmar que falará com os líderes mundiais sobre a atitude da empresa de o fazer, vemos a importância que a série têm não só para nós, brasileiros, mas para as pessoas minimamente preocupadas com arte e política no mundo. O excesso de zelo de Padilha de colocar nomes diferentes para personagens e órgãos (como a Polícia Federal (para Polícia Federativa, por exemplo) e a criação de personagens e dramas fictícios para segurarem a trama principal já explicita a intenção-mor de Padilha: não que a obra seja uma cartilha política, mas o que é: uma obra ficcional – ainda que com laços fortes com a realidade, não deixa de ser uma série de TV.
O que quero dizer é: a preocupação de Dilma – e tantos outros críticos ou militantes – em criticar uma série inspirada na verdade mas que não se propõe ser documental não deveria tomar as proporções que tomaram: mas a intenção dela de avisar a líderes mundiais desse comportamento da Netflix, em um tom que beira à censura deveria nos preocupar, sim, e ser mais um motivo para que se veja a série e lembrar de como o uso de influência política pode ser nocivo para nós – ainda mais quando se fala de produções culturais, aproveitando que a própria presidente se lembrou da ditadura militar na sua entrevista.
De fato, havemos de considerar que a série tem um viés político, afinal é o pano de fundo do enredo e corrupção é um dos seus temas principais. Tudo isso, aliado ao fato de que é impossível ser parcial, ainda mais em uma obra ficcional (e reforçando que não é um documentário), realça a importância de se assistir a série, seja você pró qualquer partido – afinal, há também a figura do personagem de Aécio Neves retratado – e ele é um dos únicos, senão o único, que é descaradamente chamado de bandido, e que também é apresentado como manipulador de mídia, sendo uma crítica muito alinhada ao que a esquerda sempre diz. No entanto, lembremo-nos de Barthes quando diz que uma obra literária não pode ser escrita e lida (ou, nesse caso, adaptando: vista) unicamente com um viés socioideologizado, pois provocaria sua própria esterilização, e é isso que O Mecanismo faz, não se prendendo necessariamente a um dos lados, ou a uma leitura ou a outra, mas busca fazer um enredo bem estruturado agindo livremente sobre fatos e pessoas reais.
E diferentemente do que alguns sites afirmam, de que a série passa a sensação de que ninguém prestaria a não ser a polícia federal, o Ministério Público e um policial bipolar aposentado, Padilha também tece críticas aos órgãos e a pessoas que trabalham nele: Rufo não é um bom pai e esposo e é totalmente descontrolado, não algum tipo de herói renegado – tal como a sua contraparte real poderia ser vista, que fora afastado e teve depressão após isso; a Polícia Federal, na série, é comandada por um homem que parece ter rabo preso e pune, de certa forma, pessoas que agem fazendo o bem; no MP, temos um dos procuradores que acata por impulso quase todo tipo de acordo, sem pensar em quão ruins eles podem ser para a justiça e bons para aqueles que foram presos, além de ser mentiroso e adúltero. A série, apesar de não ser neutra, tenta dar uma de isenta em vários momentos, o que pode, de certa forma, prejudicá-la em uma leitura que tente associá-la diretamente com a realidade dos fatos ocorridos.
Ninguém ali se salva totalmente. Os defeitos são mostrados, as pequenas corrupções trazidas à luz do sol, e servem tanto para a trama, como um lembrete aos espectadores da nossa falha primordial. Apesar de contar a série de um modo muito cru, há metáforas visuais muito interessantes. Uma delas, que chamou muito a minha atenção, apesar da sua obviedade: no final do sexto episódio, quando Rufo olha a tampa do bueiro, na frente da sua casa, sendo levantada pela própria água do esgoto, enquanto em sua narração faz crítica profunda ao Brasil, como uma máquina de moer gente. A cena se continua no sétimo episódio e dá um valor narrativo para não ficar o símbolo simplesmente solto na série, retomando o seu enfoque à narrativa mais crua que simbólica ou cheia de significados profundos. Fato é: muitas vezes temos de “sujar as mãos” e nos virar com o lixo que nos é jogado, mesmo que incontrolável, e não tentar resolver as coisas por fora e continuar alimentando esse sistema de esgoto regurgitante.
Além disso, a direção faz uso constante das cores verde, amarelo, azul e vermelho, causando a constante sensação de localização específica da série e a lembrança de que já estamos com nossa red light acesa há um bom tempo. Cenas assim, apesar de comuns, despertam em nós a lembrança de que a série, que adota um modelo de apresentação bem encaixado com as séries Netflix no geral, é 100% brasileira. Não é algo tão grandioso quanto uma antropofagia cultural, mas é agradável de se ver.
Ademais, em momentos de prisão e diálogos nas celas, há o mérito em conseguir causar uma sensação de claustrofobia, mostrando os ambientes apertados e desconfortáveis em contrapartida aos casarões luxuosos que antes os presos ocupavam. Essa claustrofobia chega num ápice com a transferência de J.P., que vai para um presídio estadual e fica numa cela minúscula com uma figura de um demônio grafitada na parede, fazendo outra metáfora visual, novamente óbvia, mas com impacto relativo para a história e desenvolvimento dos personagens.
Em uma cena de cadeia aliás, há um momento de real incômodo com as batidas das canecas nas grades, que alcança o distúrbio aparentemente desejado pela edição de som. Aliás, é possível notar o uso de uma ilusão auditiva para provocar tensão constante em quase todos os episódios da série, na qual se consiste de uma sobreposição de oitavas que provoca uma sensação de um “ciclo crescente”. E também é nessa ilusão de ciclo que o som também nos faz recordar o som de uma sirene em alguns momentos, reforçando a temática e ambientação da série. Desse modo a trilha sonora provoca apreensão mesmo nos momentos que seriam um pouco mais parados.
No entanto, nem todas as escolhas da direção e de enredo da série são boas. Há cenas de nudez em momentos aleatórios (uma exigência do algoritmo da Netflix?). O enredo não apresenta um vilão que de fato nos passe preocupação, apesar de tentar depositar esse peso na figura de Ibrahim, e deixa o enredo grandioso demais, apesar da simplicidade – especialmente para quem não acompanhou a Lava-Jato ou para quem é de outros países por exemplo, quase como aqueles filmes adaptados de livros que quem não leu o livro não conseguirá entender em completude o que se aconteceu. O mesmo acontece com a narração que em alguns momentos nos ajuda a retomar acontecimentos, há momentos em que ela serve apenas para explicitar o que vai acontecer ou aconteceu em determinada cena, sendo dispensável; isso quando não faz considerações que tentam ser impactantes – algumas conseguem – e outras que me parecem soltas, até mesmo com a realidade: afinal, Policial Federal atua em favelas tal como um policial militar?
Somado a isso, a season finale da série não me pareceu muito consistente tal como foram os outros episódios, sendo relativamente fraca e não atendendo por completo a tensão e apreensão gerada em toda a série. O episódio, porém, não é de todo ruim, deixando um gancho para próximas temporadas e a certeza de que o mecanismo é mais complexo e não parou de girar.
Dito isso, vemos que O Mecanismo não é uma série perfeita, mas não deveria ser ignorada, tendo em vista ser uma produção nacional com qualidades técnicas e de enredo, e, mais que isso, o fato de que grandes nomes da política e crítica insistirem em dizer que a série produziu “fake news” (sendo que nem documental se pretendia ser) e que deveria ser proibida ou retirada do catálogo por possíveis posições políticas (sendo que esses mesmos nomes defendem a impossibilidade de uma neutralidade em tudo que se faz), somente ressalta o valor do seriado e da sua apresentação e críticas a trocas de influência política e a pequenas e grandes corrupções.