Num planeta que apresenta mais de 7 bilhões de habitantes, e onde as fronteiras da cultura e da linguagem vêm sendo dissolvidas pela internet, é custoso imaginar que existem mais de 7000 línguas diferentes sendo faladas numa mesma superfície terrestre. Mais custoso ainda imaginar que, até o próximo século, há uma probabilidade da extinção de 50% dessas línguas, com a média de duas mortes mensais. Linguistas em várias partes do mundo se dedicam para salvar certos idiomas e dialetos da extinção, entretanto, sofrem resistência dos próprios falantes.
Um dos motivos é que os idiomas menos falados tendem a interessar ainda menos os jovens e potenciais falantes da sua língua, que são desmotivados pela “inutilidade” de tal fluência no dia-dia e ao procurar um emprego. Além disso, há relutância dos mais velhos a ensinar algo “falido” para a próxima geração, com medo de que possa ser um empecilho para que a mesma melhore socioeconomicamente. Em contrapartida, a língua-mãe é fator inerente à alma – ou ao emocional, se preferir. Privar-se de se comunicar do jeito que fomos criados é clausura, e muitas pessoas sofrem com essa condição. Com a famosa globalização, as mídias sociais e a internet demandam uma comunicação cada vez menos heterogênea, consolidando os idiomas mais comuns no mundo para melhor trânsito de informação.
O essencial é discorrer sobre como a linguagem afeta cada indivíduo. O que significará para os últimos mil falantes do Seri, no México, a iminente extinção do seu idioma? Sem investimento do governo e interesse dos mais jovens, não há outro fim senão isso – a perda de todo um patrimônio cultural que carrega em seu repertório linguístico. Algum dia, falantes do Seri deixarão de ensinar a língua para seus filhos, que aprenderão a se comunicar como a maioria da população do México e não carregarão a mesma “essência” da língua como seus antepassados.
Afinal de contas, por que “essência”? Por que a nossa língua materna é importante? A língua influencia quem somos? A questão sobre a relação entre linguagem e pensamento carrega muitas dúvidas e opiniões divergentes.
Lera Boroditsky é professora de Neurociência e Psicologia na Universidade de Stanford que defende a tese que nossa língua pode, sim, moldar nossos pensamentos – polêmica! Acontece que esse assunto foi fruto de pouquíssimo trabalho empírico e Lera, por sua vez, recolheu dados da China, Grécia, Chile, Indonésia, Rússia e da Oceania aborígene para a construção de seu artigo “How does language shapes the way we think?”. Em suas pesquisas, conseguiu até afirmar que línguas como espanhol e alemão, cujos substantivos apresentam gêneros diferentes, influenciam na forma que os falantes traçam características a eles. Contudo, o estudo de Lera Boroditsky mais digno de ser citado aqui foi realizado numa comunidade aborígene chamada Pormpuraaw. A língua local, Kuuk Thaayorre, não apresenta palavras como “direita”, “esquerda”, “trás” e “frente” no seu vocabulário. São utilizados os pontos cardinais como “norte”, “sul”, “leste”, “oeste”, “sudoeste”, “sudeste”, etc. Como avisar alguém que há um bicho em sua perna direita? “Ei, tem um bicho na sua perna sudeste”. Sim, pois é. Lena provou que a língua os motiva (forçando, basicamente) a estar sempre ciente das direções; a comunidade possui um senso espacial como poucos. Ao mostrar fotos de progressão temporal misturadas (como as fases do crescimento de uma flor, por exemplo), pediu para algumas pessoas colocarem as fotos em ordem no chão. Sua equipe testou uma pessoa por vez, a cada sequência de fotos com elas sentadas em direções diferentes.
Caso esse estudo tivesse sido feito no Brasil, com falantes de português, a grande maioria colocaria a sequência da esquerda para direita. Com falantes de hebraico, seriam da direita para esquerda. Em Pormpuraaw, o resultado foi o seguinte: quando de frente para o norte, as imagens eram colocadas da direita para esquerda; de frente para o sul, da esquerda para direita; e de frente para o leste, as fotos eram colocadas em direção ao corpo. O padrão, apesar de confuso para nós, era simples para eles: as fotos eram sempre colocadas de leste para oeste. Lena e sua equipe não comentou em qual direção eles estavam. A identificação ocorre de modo espontâneo, pois a expressão (que é algo tão natural) exige essa noção de espaço. “De nada”, a língua diz.
Confira a palestra TED que a cientista realizou sobre sua pesquisa:
Que a linguagem é capaz de mudar o mundo, não se discute. É a eficiência da boa comunicação que emprega os grandes líderes humanitárias; é a língua que articula os vínculos entre seres da nossa espécie. É também, por sua vez, é a forma mais sofisticada de linguagem, se fazendo presente nos sentidos e nos pensamentos. No diálogo “Sofista” de Platão, Sócrates motiva seus discípulos a definir suas palavras, ao invés de se contentarem com as aceitações comuns. Para ele, “pensamento” (διάνοια) e discurso (λόγος) são o mesmo; mas o pensamento é uma espécie de conversa interior silenciosa que a alma tem consigo mesma e acabou recebendo esse nome “especial”. Em Filebo, ele descreve o pensar como um “escritor dentro de nós”, que pode usar as palavras para o bem ou para o mal. Em seu diálogo com Crátilo, Sócrates também adverte contra “aprender as coisas por intermédio das palavras, e não das coisas em si”.
A própria língua grega apresenta quatro palavras diferentes para o nosso simplório (mas poderoso) “amor”. São elas Ágape (o amor sagrado, de Deus por seus filhos e vice-versa), Philia (o amor fraternal, baseado em lealdade), Eros (o amor carnal e sexual) e Storge (amor entre pais e filhos, baseado na empatia da família). É de se esperar, portanto, que os gregos possuam uma noção específica de amor, que é demandada pelo exercício quase automático da língua. Entretanto, isso não significa que certa pessoa que fala grego possui uma sofisticação maior no conhecimento sobre sentimentos que os brasileiros com seu simplório “amor”, que nós nunca poderemos ceder a esse tipo de “classificação” amorosa, ou que nunca teremos uma noção espacial como os aborígenes de Pormpuraaw. A principal diferença é que a língua exige essa noção, do mesmo jeito que os falantes de português possuem seus próprios conceitos.
O linguista, filósofo e quase tudo Noam Chomsky, diferente do Sócrates de Platão (que considerava o pensamento um “escritor” em nossa mente), descreve a linguagem em dois níveis: o primeiro é silencioso, e o raciocínio ocorre sem as palavras; no segundo, todo esse raciocínio é condensado em forma de frases. Entre esses dois níveis (profundo e superficial), há um conjunto de transformações que devem ser estudadas pelos linguistas. Para Chomsky, nenhuma língua se difere nas características mais profundas, pois elas são marcas comuns em cada cérebro humano. Apesar dessas afirmações, ele declara que “com a perda de uma língua se perde uma pista, talvez irrecuperável, para a solução do mistério da linguagem humana”. De fato, a tendência é que cada vez mais línguas sejam extintas e levem junto uma grande quantidade de conhecimento, mas cabe a cada último falante de uma língua não abrir mão do universo que carregam nela.
Conheça o projeto do Google que visa fortalecer as raízes de línguas em extinção: http://www.endangeredlanguages.com/
Fonte da imagem: https://www.flickr.com/photos/tedconference/38071250736