Autora: Luanda Julião
Facebook: https://www.facebook.com/luanda.juliao.1/
Editora: Patuá
Ano: 2018
Páginas: 128
“Para saber se vale a pena viver, é preciso morrer.”
Assis Brasil, O Aprendizado da Morte
“Eu quero estar vivo quando eu morrer.”
A Ária das Águas, Luanda Julião
Aprendizado da morte. A cada instante da vida somos colocados frente a um aprendizado da morte. A morte, entretanto, mesmo que se deixe aprender não se deixa apreender, o que faz com que a cada nova morte, a cada nova narrativa de vida em desvanecimento nos chega a mesma pergunta: o que é isto, a morte? Ou mais, o que é isto, morrer? Mesmo porque há uma diferença entre a morte, morrer e estar morto. A morte, não deixa de ser, de certa forma, uma instância metafísica que se dá a todos a todo tempo como composição de sujeitos. O gesto de morrer, o mais solitário de todos, é aquele em que, mesmo na mais intensa vida, como previsto por Nietzsche na dança à beira do abismo, nunca se fecha como uma fábula, como uma parábola em que moral da história e sentido estão dados: morrer é, também, construir uma narrativa. Por fim, estar morto se configura como esta árdua tarefa de legado que deixamos aos outros: só quem perde um pai ou uma mãe – ou qualquer ente querido – sabe que estes vivem e só viverão enquanto nossa memória for capaz de dar a eles trações e feitos, memórias e histórias. Por isso, A Ária das Águas, de Luanda Julião importa: porque morte é aprendizado, mas é também um espaço de afeto em vida.

Ária das Águas, de Luanda Julião, conta a história do maestro Paolo Savina, um dos maiores profissionais de sua área e um homem mau humorado e intransigente tanto em seu trabalho quanto em sua vida pessoal. Paolo descobre, em dado momento da vida, estar acometido por um câncer que rapidamente se espalha por seu organismo. Após tentar diversos tratamentos invasivos sem sucesso e desesperançado por ver no horizonte uma morte em um ambiente frio de hospital e em meio a medicamentos doloridos e ineficazes, ele opta, com o relutante aval de sua filha Sarah, por interromper o tratamento e passar seus últimos dias em sua chácara Speranza. Ali, aos poucos, ele volta a se reencontrar com sua história, com sua família e com a paixão de sua vida: A música.
O gesto de Paolo, conhecido como “eutanásia passiva”, ou seja, aquela que se diferencia da “eutanásia ativa” em que se injetam substâncias letais e sedativas para que o sujeito tenha uma morte quase indolor, faz parte ainda de um debate que, segundo a própria Luanda ainda se faz em “tom fraco”. A diferença entre causar a morte e deixar morrer, principalmente, ainda estão como frágeis, pouco claros para a maior parte da população. Considerado ainda crime de homicídio no Brasil, ambas as práticas ainda suscitam debates sobre quais os limites do Estado sobre o direito do corpo das pessoas e, por um outro viés, a quem cabe a decisão de se manter vivo ou morto: aos médicos? Aos familiares? Ao próprio paciente? Ao Estado? Todas estas discussões pairam emergem do interior da obra de Luanda, seja no momento em que Paolo faz o fatídico pedido aos médicos e à sua filha, seja no momento em que Sarah realmente leva o pedido do pai a sério, seja no momento em que o médico se vê confrontado entre sua ética profissional e sua ética individual. Sem fugir do tabu, Luanda amplia a discussão e a mantém viva, dando a ela novos tons. Mas não só.
A vida não passava de um simples rascunho, um esboço definitivo que se faz continuadamente, sem qualquer chance de ser passado a limpo ou melhorado.
A Ária das Águas, se é que se pode dizer assim, é uma obra que transborda afetos e poesia. Transborda pensamento e sentimento. Há uma medida exata em que as descrições das subjetividades e as intensividades diante da natureza. Para isto, a obra se monta, de certa forma, através de composições de imagens que se alternam, como o hospital e a chácara, o quarto fechado de Paolo e o belo jardim cuidado por Cícero, as chuvas que inundam as terras pelo céu do presente e o rio turvo que habita as memórias do passado. Estas composições de imagens que estão sempre em metamorfose, na medida em que cada uma delas é também outras que se transmigram desta exterioridade para interioridades. Assim, cria-se uma espécie de ambiente em formação e decomposição em que o livro ganha aberturas infinitas tanto para uma tarde em que Paolo olha fotos do passado com o filho Vitório, quanto no momento em que, ao adentrar em casa, a música é capaz de proporcionar um momento singular em um átimo de encontro familiar: o filho Carlos – aquele que rejeitava a música – senta-se ao piano e toca o Noturno de Chopin, em uma noite qualquer.
É interessante pensar também que o próprio título nos dá indício e prenuncia o que seria A Ária das Águas: a ária, na música clássica, é a parte escrita de uma sinfonia ou ópera para um solista, ou seja, toda ária, embora compartilhada com o restante da orquestra, nada mais é do que um gesto individual, feito para a unidade e que, ainda que possa ser compartilhado com outros, não pode ser dividido com ninguém: como a morte.
Que a vida seja longa e inventiva enquanto durar.
Pode-se destacar também, em Ária das Águas, a morte através de um estatuto que, narrativamente, é vista como algo em constante transformação, como se Luanda, através de uma experiência pessoal ou uma intuição que só as grandes artistas têm, tivesse intuído ou anunciado que a morte, como tal, passa por diversas fases: no começo, vemos a morte como uma espécie de ameaça, uma luta interior entre o organismo que reluta em se declarar perdedor; em um outro momento, a morte se torna exílio, através da total incapacidade de se compartilhar uma experiência que, embora real, ainda está lançada no tempo; depois, a morte aparece como espera, como fração de vida porvir, em um gesto que se dá não pela batalha nem pela entrega, mas em uma zona limiar entre as duas coisas, um entre gestos; por fim, a morte com uma possibilidade de reencontro com a vida, como reencenação de sua história, talvez visando escrever os últimos traços que serão narrados posteriormente pelos que estão vivo, talvez para, ainda com o pincel da vida na mão, tentar traçar pequenas cores e formas que deem os últimos toques de uma tela quase toda preenchida. A Ária das Águas vê a morte como o rio de Heráclito: nunca o mesmo, sempre em movimento.
Paolo nasceu e morreu tão perdido e demasiadamente tão humano quanto qualquer um de nós.

Ao fim, A Ária das Águas é, como escrita, também uma ária. Estar frente a composição da história de um sujeito que se amplia para outros lados: para os afetos, para os encontros, para a possibilidade de, diante da morte, encontrar o sentido da vida. Enquanto escrita, tem a brutal tarefa de encontrar a linguagem em seu abismo final, em sua estrutura derradeira, em seu próprio fim. Não é à toa que, diante da morte, Luanda tenha optado pelo uso de um curioso enjambement, ou efeito droste que pode ser visto, por exemplo, nas bonecas russas: a obra que chega ao fim possui um personagem, um dos filhos de Paolo, que resolve contar a história do pai. Seria esta a própria obra de Luanda? A literatura é infinita e enquanto existir não vai existir morte, mesmo diante da mais inelutável e inescapável morte.
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Sobre a autora:

Luanda Julião nasceu no dia 30/06/1982, em São Paulo, no Parque São Jorge, zona leste da capital paulista, local onde moro atualmente, depois de residir no interior de São Paulo durante quase toda a sua infância e juventude. Concluiu a graduação em Filosofia em 2012 e o mestrado em 2014 na Universidade Federal de São Paulo. E, atualmente, é doutoranda em Filosofia Contemporânea na Universidade Federal de São Carlos. Atualmente leciona História e Filosofia nas escolas públicas estaduais da capital paulista, onde desenvolve projetos que envolvem o debate entre jovens e adolescentes em temas urgentes e atuais. Entre esses projetos, organizou uma coletânea de poemas entre os seus alunos do ensino médio. O projeto que virou livro foi publicado pela Editora Patuá. A Ária das Águas é o seu primeiro romance publicado pela editora.