Elas não eram irmãs. Eram só duas meninas. Descritas na notícia em meio a números sobre crianças mortas pela síndrome com nome próprio causada pelo vírus. Não sabemos onde viviam, se iam à escola ou brincavam na praia.
Sem idades. Só meninas. De qualquer lugar, talvez de todos os lugares.
Debora Diniz @reliquia.rum
Quando o primeiro caso da COVID-19 foi confirmado no Brasil em fevereiro de 2020, a esperança era de que o país não vivenciasse o mesmo luto massivo que outros países, que já eram assolados pelas consequências do coronavírus. Imagens do colapso da saúde na China e na Europa circulavam junto aos números obscenamente alto de mortes. E o que esperávamos de pior para o nosso país se concretizou: em janeiro de 2021, atingimos a marca de 200 mil mortes.
Apesar da aparente “neutralidade” do vírus, que acometeria pessoas por questões puramente orgânicas, sabemos, a partir dos dados, que a pandemia tem corpos e lugares marcados. A morte pelo coronavírus afeta aqueles mais vulneráveis ao contágio: trabalhadores de serviços essenciais, sobretudo os profissionais de saúde, dentre outros que não podem fazer o isolamento.
Por trás das estatísticas, há muitas histórias ainda não contadas sobre as vítimas da COVID-19. E é sobre isso que a página de Instagram @reliquia.rum quer contar.
A página é um relicário de memórias dos que morreram pela COVID-19 no Brasil. Entre 23 de março e 2 de novembro de 2020 (dia de Finados), a antropóloga Debora Diniz e o artista Ramon Navarro se dedicaram a homenagear, diariamente, mulheres vitimadas pelo coronavírus.
Diniz, que é uma das mais relevantes pesquisadoras de bioética do país, é autora do livro de etnografia vencedor do Jabuti Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global, com uma trajetória expressiva na luta pelos direitos reprodutivos das mulheres.
Iniciativas similares a essa podem ser encontradas também no memorial virtual Inumeráveis (@inumeraveismemorial), que apresenta singelas falas sobre a vida daqueles morreram por complicações da COVID-19, com nome, idade e lugar.
A proposta de Diniz e Navarro no entanto procura um caminho menos expositivo em relação a essas informações. Cada postagem é uma colagem de Ramon, que sempre se utilizando de montagens surrealistas, repleta de símbolos, com mulheres trajadas como antigamente.
O texto da legenda, da autoria de Debora, é uma poética e sensível homenagem – que no entanto não deixa de refletir sobre as condições das mortes e sobre o apagamento dessas mulheres. O nome da vítima nunca é dito, e essa abordagem é justificada por Diniz como uma forma de provocar o silêncio sobre as biografias.
A página se iniciou no dia 23 de março com a morte da primeira mulher no Rio de Janeiro. Na ocasião, seu nome ainda não era conhecido: sabia-se apenas que ela uma empregada doméstica de 63 anos e que contraiu o vírus de sua patroa, que havia acabado de voltar da Itália (o segundo epicentro da pandemia no mundo).
A primeira mulher a morrer no Rio de Janeiro é sem nome. Sabemos que era empregada doméstica. Morreu porque não lhe avisaram que a patroa estava doente. •
Deixou filhos. Deixou em nós a cicatriz do que faz a herança colonial neste país. [arte: @ramondebh ]
@reliquia.rum
O que a morte dessa mulher, mais tarde identificada como Cleonice Gonçalves, já nos antecipava sobre a pandemia no Brasil é que a morte pela COVID-19 não se dá na aleatoriedade democrática do vírus. Apesar de haver muito o que se descobrir sobre as condições da doença, as histórias de @reliquia.rum mostram que a vulnerabilidade ao coronavírus é sobretudo de ordem biossocial, e atravessa os abismos de um país profundamente desigual – em gênero, raça e classe.
Hoje já somamos mais de 200 mil mortes. Quando ainda éramos a metade desse número, em agosto de 2020, Debora Diniz escreveu um texto para o jornal El País intitulado “O relicário de uma pandemia“. Este que ela finaliza dizendo:
A desordem do presente reclama formas de imaginação para suportarmos o luto. Foi assim que passamos a contar biografias verdadeiras, escavadas das notícias, porém com colagens de mulheres de outro tempo e história que não o nosso. […] É desse balanço, entre o luto e a resistência que imagino um mundo pós-pandemia com espaço político para a solidariedade feminista. Não podemos sair dos meses de desalento com a mesma tranquilidade que o antigo normal alentava nossos privilégios.
Debora Diniz
Este texto é um convite a conhecer a histórias dessas mulheres pelos olhares de Debora Diniz e Ramon Navarro. Acesse aqui a página na íntegra.
Ela foi a primeira de Minas Gerais a morrer. Houve mais segredo que o anonimato das estatísticas. Ela foi só apresentada como “idosa”. [arte: @ramondebh ]
@reliquia.rum
O cortejo passou pelos lugares em que ela cuidou de gente doente. Era enfermeira. Ficou órfã há três meses. O mesmo vírus levou o pai. •
Morreu aos 55 anos, Rio Branco, Acre.
[arte: @ramondebh ]
@reliquia.rum
No enterro estavam os dois filhos e o marido. Nasceu em Esperantina, cidade que mais parece ter nome impossível para quem a doença matou no Rio de Janeiro. [arte: @ramondebh ]
@reliquia.rum
O filho morreu sem cerimônias fúnebres. A mãe foi logo depois. Uma velha senhora indígena. •
Morreu aos 86 anos, povo Karitiana, em Rondônia. [arte: @ramondebh ]
@reliquia,rum
Foram muito mortos. Setenta e um. No meio deles, estava a menininha. Imagino que guardar seus brinquedos é o velório proibido pela pandemia. • Morreu aos 3 anos, Canoas, Rio Grande do Sul.
[arte: @ramondebh ]
@reliquia.rum
Elas se aproximaram por ele. Elas se foram juntas. Ele ficou órfão e viúvo na mesma semana. Mãe e esposa, sogra e nora.
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Ela morreu aos 33 anos, ela morreu aos 67 anos. Em Joinville, Santa Catarina. [arte: @ramondebh ]
@reliquia.rum
“São três mulheres”, dizia a notícia. Não eram parentes nem aderentes. Só aproximadas por quem as enumerou. Nada sobre elas.
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Morreram aos 19, 40 e 49 anos, em Santa Bárbara D’Oeste, São Paulo.
@reliquia,rum
Houve um incêndio no hospital. As duas morreram. Não se conheciam. Talvez fossem vizinhas de leitos.
Tinham 42 e 83 anos. Morreram no Rio de Janeiro, capital.
@reliquia.rum
Ela foi adoecendo em casa. Chegou tarde ao hospital. As razões para a demora são desconhecidas, assim como qualquer detalhe de quem foi. A família diz que não foi o novo vírus. A ciência mostra o teste.
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Morreu aos 42 anos, em Serra Talhada, Pernambucano.
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Arte não se explica. Na ousadia de palavrear o que se vê, uma tentativa de oferecer mais palavras ao luto:<Quem olha por ela é o pássaro. Ele voa numa direção, ela se mantém uma estátua. O segundo pássaro mais parece um vigilante do corpo. Parada no tempo, ela está vestida para a eternidade. Deve haver festa. Não sei como navega no oceano>
[arte: @ramondebh ]
@reliquia.rum
Imagem de capa: Ramon Navarro / Reprodução