Resenha de “A Nota Amarela – seguida de “Sobre a escrita: um ensaio à moda de Montaigne”, de Gustavo Melo Czekster, 2020, editora Zouk, 237 páginas.
O primeiro romance do escritor gaúcho Gustavo Melo Czekster, intitulado A Nota Amarela, trata de um tema absolutamente essencial para qualquer escritor, artista ou ser humano que tenha curiosidade referente ao processo criativo, e a forma como esse processo leva a um conhecimento mais profundo de nós mesmos. Digo isso porque o tópico central que permeia esta obra de Czekster é, como define o próprio autor no ensaio que acompanha o romance, “discutir a essência do ato de criação, a proximidade a que nos encontramos da obra de arte perfeita, a ideia de que cada pessoa possui uma extensão do divino em seu interior” (CZEKSTER, 2020, p. 185).
O romance é inspirado na celista Jacqueline du Pré, e toda a narrativa do romance se passa durante o decorrer dos 30 minutos do Concerto para violoncelo de Elgar, no qual o maestro a conduzir o concerto foi Daniel Barenboim, o então marido de Jacqueline du Pré. O concerto foi filmado em 1967, época em que du Pré atingia o auge de sua brilhante carreira, a qual foi interrompida poucos anos depois, pois a jovem celista passou a sofrer de esclerose múltipla, doença esta que a afastou da sua arte e a levou ao óbito precocemente.
Um romance inteiro que se passa durante um intervalo de trinta minutos, durante um único concerto: como Czkester transforma um evento musical do mundo real em um profundo e inesquecível mergulho na mente humana? Através de uma escrita dinâmica que, em primeira pessoa, nos revela as lembranças, angústias, sentimentos e sensações de Jacqueline du Pré, de forma a acompanhar o ritmo do concerto. A narrativa é dividida em 31 capítulos em primeira pessoa, seguindo de forma decrescente, indo do minuto 30 até o minuto zero do concerto, além de mais dois capítulos em terceira pessoa, um anterior ao concerto e um após o encerramento da apresentação. No decorrer dos 31 capítulos narrados em primeira pessoa, vemos Jacqueline du Pré tocando, suas breves interações com olhares e discretos sorrisos a Daniel Barenboim, breves olhares à orquestra e à plateia. Porém, o foco da narrativa, o que leva o leitor a virar as páginas vorazmente não é a ação exterior no local onde se encontra a personagem, mas a jornada interior de Jacqueline du Pré: durante o concerto, dentre diversas divagações e memórias da celista que nos são apresentadas e nos envolvem com a força da narrativa bem construída de Czekster, surge a menção à nota amarela.
Tudo começa quando Jacqueline vê na plateia uma mulher com um lenço amarelo, e, por algum motivo que ela então desconhece, a cor a amarela a perturba. Ela começa a tentar buscar por suas lembranças se chegou a ter roupas ou acessórios amarelos ou qual o seu problema com a cor. Até que ela chega à lembrança que nos leva ao foco do romance: quando era mais jovem, certo dia, o seu professor de violoncelo, Will – que está na plateia, assistindo ao concerto – contara a ela sobre uma crença chinesa sobre a chamada nota amarela, que é “a partícula do som perfeito que deu origem a toas as coisas do universo. Considerada a mais perfeita manifestação audível do som cósmico, a nota amarela era reverenciada na China por ser a expressão mais genuína do Verbo que se encontra na origem de tudo” (ibid. p. 79). Segundo essa crença, tudo o que existe possui parte da nota amarela em si. A partir do momento em que Jacqueline du Pré acessa tal memória, ela começa primeiro a questionar a possibilidade da existência da nota amarela, até se tornar obcecada por atingir esse nível de perfeição em sua música.
No entanto, conforme a celista sente que se aproxima da nota amarela, uma peculiar angústia a acomete: Jacqueline compreende que a nota amarela talvez esteja oculta entre seus medos mais profundos, e desvendá-la talvez signifique mergulhar em seu inconsciente de uma forma que ela jamais será a mesma desde a realização de tal descoberta. Essa angústia toma conta de Jacqueline, e quanto mais ela é atormentada pela iminente chegada da nota amarela (a qual “tenta impor a sua presença em meio a música” (ibid. p. 101), mais ela se concentra na música e tenta evitá-la, temendo o que tal conhecimento absoluto poderá acarretar. A proximidade da nota amarela a assusta e a fascina, ao ponto de a nota ser comparada a um demônio o qual Jacqueline se arrepende de ter libertado.
A maestria da escrita de Czekster descreve todo esse processo interior de descoberta da protagonista de uma forma tão lírica e dinâmica que é impossível parar de ler até que o concerto se encerre, até que o frêmito que possui Jacqueline internamente seja pacificado. O romance é seguido por um ensaio, o qual, junto à obra de ficção, compôs a tese de Doutorado de Czekster, Doutor em Escrita Criativa pela PUCRS. No ensaio, Czekster revela seguir como muso inspirador – como modelo de ensaio – o filósofo Montagne, devido à sua admiração pelo filósofo, devido à sua capacidade argumentativa, bom humor, a sua “inesperada seriedade com que aborda questões mínimas” (ibid., p. 137) e o “fascínio que demonstra em descrever as pequenezas do mundo que o cercam” (ibid.).
O ensaio de Czekster que segue o romance funciona como uma inesquecível aula de escrita criativa: o autor discorre por diversos aspectos do processo criativo e relacionados e ele, desde a escolha de Montaigne como modelo de argumentação para a escrita do ensaio, a escolha da celista Jacqueline du Pré como inspiração para a protagonista do romance, revelando também uma estranha coincidência de o autor ter sofrido um problema de saúde durante a escrita da obra, na qual a personagem também tem a saúde gravemente afetada. Passando por tudo isso, o autor aborda questionamentos relacionados às possíveis origens e razões do fazer literário, da criação artística, e, para complementar o seu raciocínio, traz diversas relevantes referências, as quais o conduzem a buscar sempre outras perspectivas, despertando assim nos leitores profundas reflexões sobre o processo criativo e a sua relação com a humanidade, à qual este parece ser intrínseco.
Uma importante observação que permeia trechos deste ensaio, e do romance também, refere-se à questão da origem inconsciente do impulso criativo e a conexão deste à busca pelo sentido da existência, em que o autor observa:
“Se o impulso criativo se origina do fundo do ser humano, conforme escreveu Freud, trazendo consigo um tsunami de sentimentos, memorias, dores, e outros elementos presentes no inconsciente do artista, os quais acabam por resultar na obra de arte, ele é tanto fonte de salvação quanto de danação, eis que o artista precisa se expor e tocar naquilo que mais teme ou venera para encontrar a própria razão de ser” (ibid. p. 174)
Em A Nota Amarela, a protagonista percebe que, quanto mais se aproxima da nota amarela, a parte da essência da criação presente nela, mais ela parece temer tal aproximação, chegando até a tentar a todo custo evitar atingir a nota amarela, pois desconhece o impacto que tal evento pode na sua percepção de si mesma, e não só na percepção, mas na sua própria existência. A Jacqueline que termina o concerto não é a mesma que o iniciou, pois a sua jornada interior durante o evento a leva a se transformar em outra mulher, “com a sensação terrível de que algo aconteceu, alguma coisa a modificou no seu interior e nada mais será da mesma forma como foi um dia” (ibid. p. 223). Ou seja, “quanto mais se mergulha na essência do processo criativo, mais se aprende a como chegar próximo de si mesmo, dos nossos medos, defeitos, virtudes e qualidades” (p. 175).
Portanto, a leitura deste romance – perfeitamente seguido pelo ensaio que revela o seu processo de desenvolvimento e tudo o que gira em torno deste processo – é em si praticamente uma jornada literária ao inconsciente, uma forma de se questionar sobre as razões de ser da arte, da música, da escrita também – da essência da criação. No entanto, a nota amarela acaba sendo não apenas uma resposta à essência da criação, mas sim um estímulo a uma busca – não apenas pela essência do processo criativo – mas pela nossa própria essência, pois muitas vezes o que precisamos é de nova formas de buscarmos a nós mesmos, e a escrita de Czekster com certeza fornece os meios para isso. Porém, sem impor quaisquer conclusões determinantes, pois, como diz o próprio autor em seu ensaio, a obra é certamente bem sucedida em despertar “uma discussão inesgotável sem exauri-la, deixando portas abertas para diálogos, realizando uma cuidadosa tessitura que nada mais faz do que louvar a experiência humana” (ibid. p. 224), e é claro, ainda deixando “um rastro de inconformidade, uma sensação de “quero mais”(ibid. p. 225).
Observação: aliás, surgindo essa sensação de “quero mais” (a que acredito ser difícil de não surgir, se tratando este livro), caso os leitores ainda não tenham lido as obras anteriores do autor, recomenda-se fortemente a leitura dos dois livros de contos: O Homem Despedaçado (2011, Editora Dublinense), e Não Há Amanhã (2017, Editora Zouk), cujos contos inclusive dialogam em temática com A Nota Amarela, pois diversos deles também tratam de questões referentes ao processo criativo, à criação literária, suas relações com a busca pelo sentido da existência, assim como a efemeridade da vida (o que é bastante sugerido pelo título da Não Há Amanhã, assim como pelo fato de haver quatro diferentes contos neste livro intitulados Efemeridade!)