Você conhece os melhores poemas de Ievguêni Ievtuchenko? Ievguêni Ievtuchenko nasceu em Zimá, na Sibéria, em 1932. Publicou seu primeiro livro, Os Exploradores do Futuro, em 1952. Ficou conhecido por suas manifestações públicas e saraus poéticos, chegando a declamar seus versos no antigo Estádio Central Lênin de Moscou para um público de mais de 100 mil pessoas. O poema publicado pelo Cândido, traduzido diretamente do russo, dialoga com Maiakóvski (“Versos Sobre o Passaporte Soviético”) e com o norte-americano Walt Whitman (“Canção Sobre Mim Mesmo”). Ievtuchenko Morreu em 2017, nos Estados Unidos, aos 84 anos de idade.
O NotaTerapia separou os 10 melhores poemas de Ievguêni Ievtuchenko. Confira:
Eu Gostaria
Eu gostaria de
nascer
em todos os países,
sem passaportes,
para o pânico do pobre MID [1];
ser um peixe
em todos os oceanos
e um cachorro em todas
as ruas do mundo.
Eu não quero me inclinar
ante quaisquer deuses,
nem quero brincar de ser
um hippie da igreja ortodoxa,
mas eu gostaria de nadar
fundo-fundo no Baikal,
e sair, fungando,
à superfície
no Mississippi.
Eu gostaria de
— em meu amado e odiado
universo —
ser uma bardana solitária
e não um goivo bem cuidado.
Uma criatura de Deus qualquer,
ainda que a última das hienas sarnentas,
mas de forma alguma um tirano,
nem mesmo o gatinho de um tirano.
Eu gostaria de ser
uma pessoa em qualquer hipóstase:
ainda que sob tortura em uma prisão guatemalteca,
ainda que sem-teto em uma favela de Hong Kong,
ainda que um esqueleto-vivo em Bangladesh,
ainda que um paupérrimo louco-por-cristo em Lhasa
ainda que um negro na Cidade do Cabo.
Eu gostaria de me deitar
sobre as facas de todos os cirurgiões do mundo,
ser corcunda, cego,
experimentar todas as doenças, todas as feridas,
deformidades,
ser um amputado de guerra,
um catador de guimbas sujas, —
para que não se crie em mim
o micróbio da superioridade.
Eu não quero ser da elite,
e, claro, também não do rebanho dos covardes,
nem o cão de guarda desse rebanho,
nem dos pastores,
para um rebanho agradável;
eu gostaria de ter felicidade,
mas não às custas dos infelizes,
eu gostaria de ter liberdade,
mas não às custas dos aprisionados.
Eu gostaria de amar
todas as mulheres do mundo,
e gostaria de ser mulher —
pelo menos uma vez…
Mãe-Natureza,
os homens foram diminuídos por ti,
por que a maternidade
não foi dada aos homens?
Se uma criança desse
batidinhas
sob seu coração
o homem talvez não fosse
cruel.
Eu gostaria de ser o pão de cada dia,
ainda que uma xícara de arroz
nas mãos de um vietnamita em lágrimas,
ainda que um pedaço de cebola
numa prisão do Haiti,
um vinho barato
numa trattoria de trabalhadores napolitanos
ou mesmo um minúsculo pedaço de queijo
na órbita lunar:
Que me comam,
que bebam,
de modo que haja utilidade
em minha morte.
Eu gostaria de estar em todas as eras,
iria então desconcertar toda a História
para deixá-la atordoada,
para ser impertinente com ela:
Cortar a gaiola de Pugatchóv
numa Rússia permeada por Gavroche,
trazer Nefertiti
na troika de Púchkin em Mikhailovski.
Eu gostaria de aumentar
o espaço de um instante
em cem vezes
para então, nesse momento,
beber com os pescadores do Rio Lena,
beijar no Beirute,
dançar sob o tantã na Guiné,
fazer greve na Renault,
correr atrás da bola com os meninos em Copacabana.
Eu gostaria de ser todas as línguas,
como águas secretas sob a terra.
Exercer todas as profissões simultaneamente.
E então haveria
um Ievtuchenko que fosse apenas poeta,
um segundo que fosse guerrilheiro,
um terceiro, estudante da Berkeley,
e um quarto, cunhador de Tbilisi.
Bem, e um quinto:
professor entre as crianças esquimós,
no Alasca;
o sexto,
um jovem presidente,
em algum lugar, digamos, em Serra Leoa;
o sétimo,
estaria ainda sacudindo
um chocalho num carrinho de bebê,
e o décimo…
o centésimo…
o milionésimo…
Para mim, ser eu mesmo é pouco,
eu preciso ser todos!
Toda criatura
foi feita em pares,
mas Deus
economizou no papel carbono
e me copiou em samizdat
num único exemplar.
Mas eu vou misturar todas as cartas,
confundir Deus!
Eu serei mil
até o último dia
para que de mim a terra zumba,
para que os computadores enlouqueçam
quando o censo mundial se der conta de mim.
Eu gostaria de estar em todas as suas barricadas,
humanidade,
lutar,
estreitar o Pirineus.
E aceitar a fé em nós mesmos,
a grande irmandade humana,
e fazer do meu próprio rosto
o rosto de toda a humanidade.
E quando eu morrer,
barulhento feito um Villon siberiano,
que me enterrem não em terra inglesa
ou italiana,
mas em nossa terra russa
numa colina tranquila,
no verde
onde, pela primeira vez
pude
sentir por todos.
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DORME AMOR
Brilham na vala as gotas salgadas.
A porta está fechada. E o mar,
fervente, erguendo-se e rompendo contra os diques,
absorveu o sol salgado.
Dorme amor…
Não atormentes a minha alma.
Adormecem já as montanhas e a estepe,
e o nosso cão coxo,
de pêlo emaranhado,
deixa-se cair e lambe a corrente salgada.
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão acorrentado
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor…
Dorme, amor…
Esquece que nos zangámos.
Imagina por exemplo:
acordamos.
Tudo está fresco.
Caímos sobre o feno.
Temos sono.
Vem um cheiro a leite azedo
lá de baixo,
da cave
convidando a sonhar.
Oh, como poderei fazer-te
imaginar tudo isto,
a ti, tão desconfiada!
Dorme, amor…
Sorri entre sonhos.
Não chores mais!Corta flores e vai pensando
onde hás-de pô-las,
e compra muitos vestidos bonitos.
Disseste alguma coisa?
É o cansaço do teu sonho inquieto.
Envolve-te no sonho, agasalha-te bem nele.
Podemos ver em sonhos tudo o que queremos,
tudo o que ansiamos
quando estamos acordados.
É absurdo não dormir,
é mesmo um delito:
o que trazemos oculto
grita-nos nas entranhas.
Que difícil para os teus olhos
trazer tanta coisa!
Debaixo das pálpebras
sentirão o alívio do sonho.
Dorme, amor…
Porque estás acordada?
É o bramido do mar?
A súplica das árvores?
Um mau pressentimento?
A sem-vergonha de alguém?
Ou talvez não de alguém,
mas simplesmente a sem-vergonha minha?
Dorme, amor…
Não é possível fazer nada,
mas sabe desde já que não é culpa minha esta culpa.
Perdoa-me — estás a ouvir?
Ama-me — estás a ouvir? —
mesmo que seja só em sonhos,
só em sonhos!
Dorme, amor…
Estamos num mundo
que voa enlouquecido
e ameaça explodir,
e é preciso abraçarmo-nos
para não cairmos dele,
e se tivermos que cair,
vamos cair abraçados.
Dorme, amor…
Não te deixes encher de raiva.
Que o sonho penetre suavemente nos teus olhos
já que é tão difícil dormir neste mundo.
Mas apesar de tudo— ouves-me, amor? —
dorme…
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão na corrente
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor…
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Foguetes e telegas
Não se deve falar mal das telegas,
A telega cumpriu a sua parte.
Quantas vezes porém,
sem mais aquela,
eu a vejo intrometer-se na arte.
Olho contristado o colega:
mais um romance —
— telega.
Lançamos luniques espaciais,
e as óperas
sempre telegais.
Ó almas-rotina,
corações lubrificados!
Telegas são telegas,
não são quadros.
E com um trom de aríetes infrenes
elas invadem as telas dos cinemas,
ó vós, que as telegas alegram,
tendes intelecto telegal.
Para que os foguetes afinal?
Vossa arte os relega:
só telegas.
Vossa arte é uma arte esforçada,
cheia de galardões em contraparte,
mas pouco importa:
é uma telegoarte,
na era dos foguetes —
condenada!
1960
Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman.
Batem à porta
“Quem é? —
“A velhice.
Vim te visitar.
“Volta mais tarde.
Estou ocupado.
Tenho mais o que fazer.
Escrevi.
Telefonei.
Perdi uma omelete.
Abri a porta,
mas não havia ninguém.
Terá sido uma brincadeira de a
migos?
Terei ouvido mal o seu nome?!
Não foi a velhice —
mas a maturidade que esteve aqui,
não pôde esperar,
suspirou
e foi-se embora!
Tradução de Marco Lucchesi
ENTRE A CIDADE SIM E A CIDADE NÃO
Sou um comboio rápido
que há muitos anos vai e vem
entre a cidade Sim
e a cidade Não.
Os meus nervos estão tensos
como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim.
Tudo está morto e assustado na cidade Não.
É como um embrulho feito de tristeza.
Dentro dela todas as coisas franzem a testa.
Há medo nos olhos de todos os retratos.
De manhã enceram com bílis o soalho.
Os sofás são de falsidade, as paredes de miséria.
Nunca te darão nessa cidade um bom conselho,
nem um ramo de flores, nem um simples aceno.
As máquinas de escrever batem, com cópia,
a resposta:
“Não-não-não… não-não-não… não-não-não…”
E quando enfim se apagam as luzes
os fantasmas iniciam o seu lúgubre bailado.
Nunca, ainda que rebentes, arranjarás bilhete
para fugir da negra cidade. Não.
Ah, mas a vida na cidade Sim é um canto de ave.
Não tem paredes a cidade, é como um ninho.
As estrelas dizem que as acolhas nos teus braços.
E sem vergonha seus lábios pedem teus lábios,
num brando murmúrio: “São tudo tolices…”
A flor provocante implora que a cortes,
os rebanhos oferecem o leite com seus mugidos,
ninguém tem ponta de medo.
E aonde queiras ir te levam num instante comboios,
barcos, aviões,
e com um rumor antigo vai a água murmurando:
“Sim-sim-sim… sim-sim-sim… sim-sim-sim…”
Mas às vezes é certo que aborrece
ser-me dado, afinal, tudo sem esforço
nesta cidade Sim, deslumbrante de cor.
É melhor ir e vir até ao fim da minha vida
entre a cidade Sim
e a cidade Não!
É melhor ter os nervos tensos como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim!
* Traduções de J. Seabra-Dinis
Bábi Yar
Nenhum monumento se ergue em Bábi Yar.
Um penhasco íngreme, feito lápide áspera.
Tenho medo.
Hoje tenho tantos anos
quanto o próprio povo israelita.
Vejo-me agora como
judeu.
Eis que perambulo pelo antigo Egito.
E eu, pregado à cruz, pereço,
ainda tenho em mim as marcas de pregos.
Vejo-me como
Dreyfus.
O filisteu
é meu delator e juiz.
Estou atrás das grades.
Estou cercado.
Intimidado,
humilhado,
caluniado.
E as damas em rendas de Bruxelas berram
enquanto furam-me o rosto com guarda-chuvas.
Sinto-me como
uma criança em Bialystok (1).
O sangue escorre, se espalha pelo chão.
Chefetes de botequim em raiva desimpedida
entre cheiros de vodca e cebola.
Apanho com pontapés, impotente.
Aos carrascos (2), suplico em vão.
Enquanto berram
“Esmaguem os judeus, salvem a Rússia!” —
um muambeiro (3) violenta a minha mãe.
Ó, meu povo russo!
Eu sei —
vocês são
internacionalistas em sua essência.
Mas, aqueles cujas mãos são sujas
chacoalham com o seu puríssimo nome.
Eu conheço a bondade da sua terra.
Quão vis são os
antissemitas que suntuosamente chamam
a si próprios de União do povo russo!
Vejo-me como
Anne Frank,
frágil
como um ramo em abril.
E amo.
Não preciso de palavras.
O que preciso
é que nos olhemos nos olhos.
Tão pouco se pode ver,
cheirar!
As folhas nos são proibidas
e o céu também é impossível.
Podemos, contudo,
gentilmente
abraçarmos uns aos outros num quarto escuro.
Estão chegando?
Não tenha medo, são ruídos
A própria primavera
virá até aqui.
Venha até mim.
Depressa, me dê os seus lábios.
Estão quebrando a porta?
Não, é o gelo se partindo…
As ervas selvagens murmuram sobre o Bábi Yar.
As árvores soam sinistras
como num julgamento.
Há no silêncio um grito sem fim,
e, tirando o chapéu,
eu
encaneço aos poucos.
Eu mesmo,
feito um berro surdo e incessante
sobre milhares e milhares de enterrados.
Eu sou
cada velho aqui abatido à bala.
Eu sou
cada criança aqui abatida à bala.
Nada disso será esquecido
por mim!
Deixem a Internacional
trovejar
quando for enterrado para sempre
o último antissemita da terra.
Não tenho uma só gota de sangue judeu.
Mas, em seu ódio insano, todos os antissemitas
neste momento me odeiam,
como a um judeu,
e por isso
eu sou um verdadeiro russo!
Tradução: André Rosa
NO MERCADO
Poema de Ievgueni Ievtuchenko,
Tradução por André Nogueira (2015).
Para qual trabalho, para qual batalha
entram as mulheres no mercado,
cobertas com véus e xales,
uma por uma, todas caladas.
Oh, o tilintar das caçarolas,
o barulho das garrafas e panelas!
A molho de salada e a cebola,
a pepino cheiram elas.
Tremo, demorando em ir ao caixa,
e ao passo em que espero
ao mercado todo encharca
o respirar dessas mulheres.
Heroínas de filhos e netos,
em silêncio, se enfileiram
e nas mãos elas apertam
o suado seu dinheiro.
Rússia, eis a honra ao mérito
que a vossas filhas deram.
A elas, que misturaram concreto,
e semearam, e ceifaram…
por tudo passaram essas mulheres
e a tudo suportaram.
Tudo no mundo lhes é possível, –
a elas pertence toda a força.
Enganá-las por um níquel
é mau e vergonhoso.
E eu as vejo, mudo e melancólico,
escolhendo alguma peça de segunda,
cansadas de segurar suas sacolas com
as mãos mais gloriosas deste mundo.
1956
trad. 8 de março de 2015 por André Nogueira
Assassinato
Ninguém dorme mais bonito do que tu.
Mas temo
que acordes agora, exatamente,
e me toques com um olhar indiferente, assim de leve, de passagem,
e cometas o assassinato da beleza.
(extraído do livro “Poesia soviética”, Editora Algol)
ENCONTRO EM COPENHAGUE
Sentados no aeroporto em Copenhague
atacávamos juntos o café.
Ali tudo era belo,
confortável —
Ambiente refinado como quê!
E de súbito
aquele velho surgiu,
japona simples e capuz verde oliva,
pele curtida
por lufadas salinas,
ou melhor,
não surgiu,
exsurgiu.
Caminhava,
singrando por turistas,
como se houvesse largado o leme faz pouco,
feito espuma do mar
a barba híspida
branca
emoldurava-lhe o rosto.
Com sombria decisão de vitória
caminhava,
erguendo uma onda volumosa,
através de antiqualhas
de um moderno postiço,
através do moderno posiçando o antigo.
E abrindo a gola da camisa rústica,
ele, rejeitando o vermute e o pernaud,
pediu ao balcão uma vodca russa
e repeliu a soda com um gesto:
“No…”
Mãos gretadas, com cicatrizes,
curtidas,
sapatos grossos, arrastando solas,
calças incrivelmente encardidas, —
era mais elegante
do que todos em roda!
A terra sob ele como que afundava,
com o peso daquelas passadas.
Um dos nossos sorriu-me:
“Ei!
Veja se não parece Hemingway!”
Caminhava,
expresso em gestos curtos,
andar de pescador, pesado, lento,
todo talhado num rochedo bruto,
como através das balas,
através dos tempos.
Caminhava, encurvado, como na trincheira,
abria caminho entre pessoas e cadeiras…
Parecia-se tanto com Hemingway!
— Depois fiquei sabendo:
era Hemingway.
Minha Letra
Minha letra não é caligráfica.
Sem seguir as regras da beleza,
as palavras se atropelam,
cambaleando,
cambaleando,
como se tivessem levado um soco nos queixos.
Mas você, o descendente, meu crítico textual,
seguindo nos calcanhares do passado,
leve em contas esses escolhos
nos quais seu ancestral tropeçou.
Ele andou num belicoso barco de frete costeiro,
um tanto arrogante,
mas você
deveria poder ver além da letra torta,
não apenas os traços do autor.
O seu ancestral escreveu atirado de um lado para o outro,
fustigado por rajadas de vento que não o mantinham aquecido,
sem ter o consolo
de hábitos como o maço
de cigarros a que estava acostumado.
É claro, fomos corajosamente longe,
mas não é fácil escrever uma só linha,
quando estão batendo a sua cabeça, com gosto,
contra o tabique.
Arriscando pele e osso,
é difícil cantar loas,
quando o que você te compele,
não a louvar, mas a vomitar…
(extraído do livro “Poesia soviética”, Editora Algol)
Fonte:
https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Poema-Ievgueni-Ievtuchenko
http://www.antoniomiranda.com.br/poesiamundialportugues/ievgueny_ievtuchenko.html
http://hotblog7faces.blogspot.com/2017/03/tres-poemas-de-ievgueni-ievtuchenko.html
https://traducaoliteraria.wordpress.com/2015/03/09/na-loja-poema-de-yevgeny-yevtushenko/
http://russiashow.blogspot.com/2017/02/um-pouco-de-poesia-ievgueni-ievtushenko.html